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O volume 23, número 4, de outubro/dezembro de 2007 da Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa está online desde a semana passada (eu acho). Essa revista é uma das mais importantes da América Latina em sua área de atuação e fico muito orgulhoso de ter meu segundo texto publicado em sequência (outro texto saiu no número 3). Vou colocar o texto aqui e o link abaixo para quem quiser conhecer mais a Revista e o Scielo.

Abraços.

"mas ele diz que me ama...": cegueira relacional e violência conjugal
Fabrício Guimarães; Eduardo Chaves & Sérgio Maciel.

Ciclo de Violência na Relação

O padrão é mais ou menos esse: beijo! Tapa! Beijo! Tapa! Beijo! Tapa! Para cada tapa, ganhamos um beijo, e para cada beijo ganhamos um tapa. Em qual deles escolhemos acreditar? No beijo, é claro. É o que nos mantém ali (Penfold, 2006, p. viii-ix).

Pelfond (2006) relata em sua obra a suas experiências conjugais que se perpassaram ao longo de 10 anos. O livro é protagonizado por Rosalind (Ros) – 35 anos, empresária – e Brian – viúvo, pai de quatro filhos. A narrativa mostra como Ros passou de uma mulher forte e bem-sucedida a esposa violentada e maltratada. Trata-se de um livro ilustrado e de fácil compreensão, fatores diferenciais da obra em relação às outras sobre o tema. Conta de forma bem didática, detalhes da construção e manutenção da dinâmica violenta. Segundo o site oficial (www.friends-of-rosalind.com), o livro foi lançado originalmente no Canadá e traduzido para 10 paises, inclusive o Brasil.

O objetivo deste trabalho situa-se em promover uma discussão teórica a respeito do ciclo de violência conjugal e das crenças compartilhadas que contribuem para a manutenção do relacionamento violento dos personagens do livro, a partir da literatura especializada da área e da experiência dos autores deste trabalho em atendimentos psicossociais no âmbito da Justiça do Distrito Federal a casais que vivenciam situação semelhante ao do casal protagonista.

A discussão se baseia na teoria do ciclo de violência (Walker, 1979, citada por Angelim, 2004), e propõe o conhecimento de uma relação violenta a partir de uma perspectiva sistêmica e dinâmica. Walker defende a existência de três fases: Construção da Tensão: começam os incidentes menores, uma tendência a considerar os fatos como se estivessem sob controle e uma aceitação por meio de explicações racionalizadas. Tensão Máxima: ocorre o descontrole da situação e as agressões são levadas ao extremo. Há uma reconfiguração da dinâmica relacional, podendo surgir separação, intervenção de terceiros ou manutenção da relação violenta. Lua de Mel: ocorre uma reestruturação do relacionamento. O agressor relata desejo de mudança, promessa de que não ocorrerá mais violência e restabelece a relação conjugal. Com o tempo, devido à dinâmica e ao desgaste relacional, tende-se a iniciar um novo ciclo.

Penfold (2006) descreve o processo de vários ciclos na dinâmica do casal. A violência se instalou sutilmente e atingiu todos os níveis e formas. Os momentos da fase de Lua de Mel ficaram mais curtos, cedendo lugar às fases de Construção da Tensão e Violência Máxima. A Lei 11.340/06, conhecida como "Lei Maria da Penha", define cinco formas principais de violência contra a mulher: física; psicológica, sexual, patrimonial e moral (Brasil, 2006). Guimarães, Tusi e Rangel (2006) relatam que a violência contra crianças e adolescentes abrange ameaças, negligência, chantagens, humilhações, espancamentos e abuso sexual. A relação descrita na obra propiciou todos esses tipos de violência e mostrou como suas conseqüências deletérias atingiram todos os aspectos da vida de Ros e das crianças.

Penfold (2006) é brilhante ao mostrar como a participação da família, amigos e ajuda profissional foram fundamentais na luta da protagonista contra o agressor e, de certa forma, contra si mesma. Sendo assim, tudo conclama para a necessidade de intervenção em rede e o empoderamento do grupo familiar, em especial da mulher (Silva, 2006).

Crenças anestésicas

Por que Brian se comportava daquele jeito? Quase morri tentando descobrir. Por que não fui embora? Essa pergunta é mais importante. Eu acreditava em dar a outra face... que ele me amava... que ele iria mudar... que eu podia proteger seus filhos... que meu amor o tornaria melhor... usei incontáveis desculpas para racionalizar minha insistência no relacionamento, porque me recusava a encarar a verdade (Penfold, 2006, p. ix).

Para entender a perpetuação do ciclo de violência, Ravazzola (1998) defende que ocorre uma verdadeira anestesia ou "duplo cego". Nesse processo, a pessoa tira do seu campo de consciência uma parte da experiência e fica incapaz de sequer perceber essa falta, o que, por um lado assegura sua sobrevivência, mas por outro, a mantém presa ao ciclo relacional abusivo.

O agressor se sente vítima do comportamento da mulher ou dos filhos; teme a independência destes; não percebe o sentimento dos outros e nem consegue nomear sua insegurança, e por isso tem que controlar a ação destes e evitar a intervenção de terceiros na dinâmica de sua família. A vítima se sente inferior e destituída de poder sobre sua própria vida; acredita que deve cuidar dos outros, em detrimento de si mesma; possui baixa auto-estima, desconhecimento de seus recursos pessoais e seus direitos; acredita que há algo errado em si mesma e alimenta sentimento de culpa pela violência que sofre. Cabe ressaltar que a experiência em atendimento psicossocial dos autores corrobora a tese de que tais crenças são compartilhadas por agressores, vítimas e demais atores do contexto (Ravazzola, 1998).

No decorrer do livro, essas crenças anestésicas se aperfeiçoam na medida em que a violência aumenta. Ros iniciou com uma leve confusão no primeiro ciclo até ela verificar que "não sobrou nada de mim" (Penfold, 2006, p.169). Essas crenças corroboram a principal: "mas ele diz que me ama", que dá título ao livro. E favorecem que Ros e Brian não vejam que não vêem a relação violenta e suas conseqüências, daí o termo "duplo cego" (Ravazzola, 1998).

Por isso, a ajuda de terceiros e/ou a intervenção psicossocial deve "promover junto à família uma reflexão sobre o contexto abusivo, re-significando o sintoma da violência" (Guimarães & cols. 2006, p. 297) e retomar o mal-estar e o medo na vítima devido à sua situação e a necessidade de mudança (Ravazzola, 1998). Entretanto, nem todos os casais em situação de violência conseguem sair ou reestruturar a relação. Muitos precisam da intervenção da Justiça. Em outros casos, as mulheres se submetem a essa situação ad infinitum ou ocorre um fim trágico, em que as vítimas são assassinadas pelos seus cônjuges ou ex-cônjuges.

comecei a ter esperanças de que meus desenhos pudessem ajudar os outros – nem que seja uma pessoa só – a perceber os danos terríveis e duradouros que tal ambiente causa em uma família (...) embora os desenhos sejam meus, infelizmente o padrão de abuso que eles representam são muito comuns (...) Tenho esperanças de que meus desenhos ajudem homens e mulheres a identificar os sinais de alerta que indicam abuso (Penfold, 2006, p. xi).

Pelos aspectos descritos acima, entende-se que a intervenção junto a casais em situações de violência deve contemplar um olhar amplo acerca das crenças e discursos compartilhados entre os atores envolvidos nessa questão, os quais contribuem para a manutenção do padrão relacional abusivo, impedindo que as pessoas integrem sentimentos e ações que lhes permitam elaborar um pedido ajuda.

Ademais, o entendimento da violência conjugal como um processo cíclico, relacional e progressivo, ajuda a re-significar o contexto de intervenção e propor novas formas de intervenção junto a essa clientela.

Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722007000400015

1 Comment:

  1. Unknown said...
    ficou bom, Duu ;P
    parabéns.

    allinearaújo.

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